#crônica – Quem sabe eu aprenda a vir com asas.

Toda esta história começa com a vinda de um viajante que havia rodado o mundo em busca de felicidade. Uma jovem mulher recebe o pedido de ser a sua anfitriã em uma grande casa.

A casa tem paredes coloridas e também paredes em cor de areia. Tem corredores enormes e pisos de mosaicos em preto e branco. Tem vários quartos e uma grande cozinha. Na copa uma mesa de 5 metros, aonde podem sentar-se muitas pessoas ao mesmo tempo. A jovem habitante e guardiã da casa desde o dia da notícia passa ansiosamente a imaginar o viajante do qual ela ouvira falar muito.

Ela lisonjeada inicia o preparo de tecidos longos, de cores, do jardim já muito florido, e enche de adjetivos bons os seus dias de espera. Ele viajaria 10 mil kilômetros até chegar em sua porta.

Na ansiedade da chegada do viajante, ela se propõe a preparar a ele o que ela tem de melhor. Ela faz planos, faz compras, limpa os pisos, verifica o que há de melhor, e dorme todas as noites com desejos.

De sobremesa, um convite da jovem a se deitar com ele, acariciar e participar das melhores lembranças daquele homem que vinha chegando. Este era o plano.

Ela aguarda o viajante e dispensa educadamente um outro conhecido que vinha aproximando-se também. Ela diz que necessita de um tempo e aguarda o viajante ansiosamente. Dele chegam recados: “Estou a caminho”.

Enfim alguém bate à porta.

O nobre visitante chega à casa, cumprimenta a jovem e sorri. Ambos olham para os calçados sujos dele, uma coincidência que os convida a sorrirem sem graça um para o outro.

– Deixa os seus sapatos na porta? É o costume desta casa. – disse ela.

– Acho que prefiro entrar com eles. – respondeu ele sorrindo.

– Como quiser, hoje é o seu primeiro dia, faça como preferir.

Os calçados do viajante trazem restos de poeira, terra, e trapos agarrados da enxorrada. São calçados de couro misturado com borracha. São antigos, surrados, e vêm sujos de lama da chuva desde o início da sua jornada.

Os seus pés grandes deixam pegadas pelo chão, o homem gosta. Ela olha, vê as mesmas pegadas sujas, mas não se importa na hora.

– Me permite que lave os seus pés, nobre viajante? – perguntou ela.

– Não obrigado, gosto de como estão. – diz olhando para trás com o caminho molhado que deixa de rastro.

O viajante diz com delicadeza que prefere não beber a água alí oferecida na casa da jovem mulher. Ele diz trazer a sua própria moringa, e pede gentilmente desculpas.

Os pratos do jantar preparados por ela começam a ser servidos, ele come o primeiro sem comentar, mas não aguarda o segundo, já argumenta sobre os pratos, sobre a toalha, e diz preferir certas comidas. Ele agradece, diz que está cansado e que deve dormir.

– Se não gosta da comida não precisa comer tudo, mas eu gostaria de convidá-lo a experimentar de tudo. – disse ela a olhar nos olhos do homem alto.

– Experimentarei, minha jovem, em algum momento experimentarei. Tenho muitas vidas e muitos quilômetros percorridos, já sei do que gostar.

– Como quiser. – disse ela se sentando a terminar o que comia.

A jovem segue:

– Senhor, te digo que esta talvez não seja a melhor casa do mundo, nem que tenhamos o melhor vinho do mundo, mas toda a beleza dela é possível de ser vista. O senhor não quer mesmo deixar os seus sapatos na porta?

– Não, não penso em deixá-los. – respondeu ele rude.

– Talvez lhe viesse bem deixar o passado naquela entrada. Aqui ao lavarmos os seus pés te mostraremos a nossa água, mesmo sabendo que o senhor gosta de carregar a sua própria.

– Minha jovem, me desculpe e agradeço a hospitalidade, mas eu não vim em busca das flores que aqui nascem. O meu coração não veio comigo, não perca o seu tempo tentando buscá-lo.

– Não trouxe o seu coração? – perguntou espantada.

– Não. – respondeu seco.

– Um corpo sem coração vive pouco. – afirmou ela.

– Não consegui trazer o meu coração, e nem quis trazê-lo para falar a verdade. Alguém o machucou e eu o enterrei por via das dúvidas em um lugar seguro.

– Alguém tomando conta? – perguntou irônica.

– Aqueles que acredito serem meus amigos, eles cuidam. Eles o tem vigiado, então não perca o seu tempo se preocupando com isso.

Eles seguem e comem em silêncio.

Nos dias seguintes o viajante decide em gratidão pela hospitalidade, dedicar parte dos seus dias ensinando a jovem a ler novos livros. Ele mostra a ela o quanto poderia ser fácil ler sem parar. A ela são tantas novas histórias, que acaba por permitir que ele se torne o especialista em cuidar das suas jovens linhas.

Ela deseja encantá-lo, não sabe agradecer-lhe. Uma noite ela chega à porta de seu quarto que está sempre fechada. Ela sabe que ele está do lado de dentro e tem medo de bater.

Ela repara que ele olha para outras mulheres que transitam pela rua, ele as vê com desejo pelas grades do jardim. Elas atraem a atenção do viajante que as despe com os olhos a todo o momento. “Cruel” – ela pensa.

– O senhor sabe que os cantos desta casa contam histórias? – perguntou ela infantil.

– Que histórias? – respondeu desinteressado.

– Não sei se gostaria de escutá-las ou vivê-las. Na verdade sem ter vivido um pouco dos desenhos destas paredes não há muito o que eu possa contar ao senhor. Há uma experiência sensorial nestas pinturas.

– Não insista, jovem. Já não quero mudar tanto, não sou como você. Gosto do jeito como controlo tudo, nunca me importei com o que os outros pensam. – diz ele sarcástico e seguro.

– O senhor foi rejeitado do lugar de onde veio? – ela pergunta sem rodeios.

– Fui rejeitado por um amor que eu considerava perfeito e controlado.

– Controlado?

– Sim. – respondeu ele como se fosse óbvio.

– Controle e amor não podem ser amigos. – disse francamente.

– A mulher que amo me deixou porque foi controlada por outras pessoas, ela não pensa, foi controlada, manipulada, e me deixou. Depois de tantos anos, ela me deixou. Ela me amava, eu tinha tudo controlado, e éramos felizes.

– Você tinha tudo controlado. – foi irônica.

O viajante se incomoda com as palavras da jovem. Ele ao invés de beber a própria água que traz, passa a usá-la para manter as solas dos seus sapatos sempre molhadas, e não pára de deixar pegadas que diariamente indicam a ele o caminho de saída.

Certo dia a jovem lhe disse:

– Caro nobre viajante, por que pediu abrigo se o senhor não quer abrigo?

– Minha doce jovem já não sei porque vim, tenho fugido de tantos lugares que este me pareceu o mais longe possível. Tento me libertar de tristes lembranças. – disse sincero.

– O senhor jamais irá se libertar das tristes lembranças carregando o cheiro e gosto de todas elas em suas vestes. Por favor, peço-lhe que aceite que eu lave os seus pés.

– Não posso permitir. Preciso das minhas botas para deixar as pegadas no chão molhadas, preciso ter a garantida da minha saída por aquela porta a qualquer momento.

– Aquela porta não tem chaves, o senhor pode sair quando quiser. – respondeu.

– Mas a casa é grande, não posso perder o caminho. – respondeu ele infantil.

– O senhor olha muito para baixo, caro viajante, e vive a preocupar-se em marcar o chão por onde passa. Não vê o quanto são belas as paredes, tetos, e pinturas?

– Gosto do chão, estou acostumado a olhar para baixo sempre.- respondeu rude – E de onde eu venho também há paredes, tetos e pinturas. Aliás, são mais bonitas do que estas.

A jovem mulher se afasta, e já não entende o que deseja o viajante. Ela o deixa sozinho conforme solicitou. Ela fica inútil já sem planos, ainda alerta de ouvidos a qualquer som de pedido de socorro dele.

– Vou partir amanhã – disse o homem – Sou grato pela acolhida.

– Eu imaginei quando o vi usando a sua água para as botas.

– Aqui não é o meu lugar. – disse desanimado.

– Eu lhe disse que nenhum corpo dura muito tempo sem coração.

– Não encontrei ouro como pensei que encontraria.

– Defina ouro. – disse ela provocando-o.

– Riqueza em pouco tempo. – respondeu sem muita certeza.

– O senhor sabe que em nenhum lugar do mundo haveria ouro fácil. O senhor veio em fuga, não trouxe o seu coração e não tirou os sapatos para entrar na casa, não poderia ter sido diferente. O senhor mesmo me disse certo dia que não precisava de muito para viver, me parece estranho dizer ter vindo em busca de ouro.

– Estou com saudades do meu coração que deixei enterrado. Achei que poderia viajar sem ele. – confessou.

– Acho que está com saudades do controle. Em sua terra o senhor tem o controle, o senhor vem de terra de colonizadores. Teria comprado aqui outros calçados e encontrado novas fontes de água pura, só faltou ter trazido o seu coração e não o deixado enterrado para trás.

Ele fica desconfortável desejando a possibilidade de ser surdo.

– Esta casa inteira não te oferecerá respeito até que o senhor prove que poderá sentir amor por ela. – continuou – Esta casa é berço de pés machucados, cheia de tetos altos e paredes repintadas de suor e sangue. Esta casa tem arte, tem perfume, tem vidas, tem cores, tem música, tem hóspedes pobres e hóspedes ricos.

– Não vejo ninguém nesta casa além de você, não vejo ouro nela, nem boa música. – retrucou irônico.

– No primeiro dia em que chegou pela porta, à esquerda havia um bilhete, o senhor não reparou. O bilhete dizia:

“Nesta casa nada prospera sem coração”

Já é tarde e ambos vão dormir sem olhares e sem desejo de boa noite.

Chega o dia seguinte, dia da partida do viajante. Ele vai em direção à porta e antes de sair ele olha para o lado onde estaria o bilhete do primeiro dia. Havia um novo bilhete que dizia:

“Deixe a porta aberta. Se fechá-la, saberemos que o senhor só quis o nosso ouro.”

Ele se vira para a jovem, dá um leve sorriso, com o olhar suave e agradecido. Ele vira de costas para ela e puxa a porta para fechá-la. Ele sai descalço e, por fim fecha por completo a porta.

A jovem desolada não pára de pensar: “ele fechou a porta”. Ela volta para a grande sala da mesa de jantar comprida, e pensa: “de que me vale tanta sabedoria se não sou e nem fui capaz de conquistar o coração daquele viajante que tinha vindo de tão longe?”

Ela olha para o lado e em um dos janelões abertos estão as botas sujas do viajante com um bilhete:

“A você, jovem mulher, confiei os meus medos, confidenciei os meus pesos, e não consegui entregar os meus pés. A sua casa tem muitas janelas, deixe-as abertas, tentarei desenterrar o meu coração aonde deixei. Quem sabe eu aprenda a vir com asas.”

 

Por Raquel Alvarez – Produtora, jornalista e publicitária.

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