#CRÔNICA – A GENTE FICA PUTO, A GENTE FICA EXAUSTO

20 de Abril de 2021

Há alguns meses eu vim aqui te contar uma história. Uma história que tentava falar de esperança sobre um mundo que aparentemente se acabava em repertórios odiosos. 

Aquele mundo já tinha matado mais de cem mil pessoas no meu país até o mês de Agosto de 2020. Mal sabia eu que estaria, outros meses depois, redigindo algo sobre o triplo ou o quádruplo de vidas desencarnadas por óbvias e notórias ingerências político-sociais do Brasil. Atualmente, a nossa nave desgovernada já levou quase quatrocentas mil vidas embora, não dá pra acreditar…

A gente não fica chateado, a gente fica PUTO e a gente fica EXAUSTO.

Essa história que eu contei em Agosto de 2020 veio em forma de podcast, aqui no Banana da Terra, em forma de vídeo no Aconteceu na Caturra no youtube e eu acabei tentando usar todas as ferramentas que eu consegui para fazer com que você e mais gente da minha terra pudesse ter escutado o meu grito.

A gente tenta gritar de um jeito fofo pra não assustar o parente carola, o amigo idoso, o colega da igreja, o conhecido que ama brigar usando link de notícia fake e para o porteiro que é convencido pelo morador da cobertura do prédio onde ele trabalha de que a meritocracia é o caminho. 

Tá foda acreditar…

Eu não sei como uma pessoa consegue rezar em paz com as desigualdades aqui na cara dela e de toda a família dela, há poucos metros, na calçada de casa. 

Como é que ninguém se abala ao ver uma criança com fome? É sadismo que fala? Ela tem fome de tudo, não adianta você ir no supermercado comprar um pacote de biscoito pra essa criança faminta da rua e achar que está ensinando o seu filho ou a sua filha a cuidar dos pobres. Não é assim, tá bem? A fome é maior do que um pacote de biscoitos. Ela tem fome de dignidade e o seu pacote de biscoitos não é a renovação do seu seguro no céu.

Eu já ouvi certa vez de uma pessoa que ela havia passado fome. E eu respondi: Não amigão! Desculpe, mas pelo que você acaba de me contar da sua história, ficar com fome um dia que lhe tenha faltado o almoço ou o jantar, não é passar fome. 

Quem passa fome, “passa fomes” e essa frase é minha. O abandono, o descaso social, a não-lealdade ao povo, o sadismo latente, severo, ardente, cruel e imoral. Abandono endossado por nós privilegiados e por você, cidadão de bem, sem meias palavras.

A maioria dos ricos e da classe média brasileira que tão comumente vivem um frequente “viralatismo” americanizando os seus costumes, passam todos os dias a ignorar a morada na rua dos outros filhos de Deus como ele, ou como ela. 

Helbert de Souza, sociólogo mais conhecido como Betinho que viveu nesta terra até 9 de Agosto de 1997 tem a célebre frase tão replicada: “Quem tem fome, tem pressa”.

Todos os dias pessoas que tem pressa passam ao lado de quem tem fome, e sim: quem tem pressa não gosta de quem tem fome.

A minha morada privilegiada me aperta os pés, me aperta a alma, venham todos vocês morar comigo, durmam perto de mim, sonhem junto comigo, me ensinem, me deixem ser mais do que eu tenho sido…

Por Raquel Alvarez – Produtora e jornalista

5 comentários sobre “#CRÔNICA – A GENTE FICA PUTO, A GENTE FICA EXAUSTO

  1. Texto absolutamente representativo de uma realidade escancarada.
    “Não é fome, são fomes”…..
    Obrigada Raquel Alvarez
    Prossigamos teimando na busca da dignidade humana, embora tantos ventos contrários.

  2. Excelente. Não bastasse a linguagem tocante, clara, aberta, quase que como um murro que nos tira da letargia – existe a realidade social que densamente nos invade, e “machuca”. Você, Raquel, não me surpreende com seus textos e imagens, pois acho que conheço um pouco sua alma de artista. Forte abraço.

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